Eleanor Marx-Aveling Karl Marx (Notas Dispersas)
Como
parte das celebrações dos 200 anos do grande Karl Marx publicamos
a seguir o texto
Karl Marx (notas dispersas) de Eleanor
Marx-Aveling.
Tradução
feita por nós do texto retirado de:
Como
era Carlos Marx, Visto por quienes lo conocieron (Seleccion de
textos),
compilação
publicada digitalmente, sem
data,
com
o selo
editorial de Omegalfa.es, disponível
em:
Acesso em: 02 de jun. 2018.
Eleanor Marx-Aveling
Karl Marx (Notas Dispersas)
Meus
amigos austríacos me pedem que lhes envie algumas recordações de
meu pai. Não poderiam ter me pedido nada mais difícil. Mas os
homens e mulheres da Áustria estão realizando uma luta tao
esplêndida pela pela causa em favor a qual viveu e trabalhou Karl
Marx, que não é possível negar. E por isto tratarei de enviar-lhes
algumas notas dispersas e desorganizadas acerca de meu pai.
Muitas
histórias se tem contado sobre Karl Marx, sobre seus “milhões”
(em libras esterlinas, evidentemente,
já que não podia ser moeda de menor denominação), até um
subsídio pago por Bismarck, que supostamente o
visitava
constantemente em Berlim nos dias da Internacional (!). Mas, afinal
de contas, para aqueles que conheciam Karl Marx, nenhuma lenda é
mais divertida do que a difundida que o retrata como um homem
rabugento, amargo, inflexível e inacessível, uma espécie de
Júpiter Trovejante, sempre lançando trovões, incapaz de um
sorriso indiferente e solitário no Olimpo. Este retrato do ser mais
feliz e alegre que já existiu, de um homem cheio de bom humor, cuja
risada calorosa era contagiante e irresistível, do mais gentil e
generoso dos companheiros é algo que nunca deixa de surpreender - e
divertir - quem o conhecia.
Em
sua vida doméstica, assim como nas relações com seus amigos e até
mesmo com os simples conhecidos, acho que se poderia dizer que as
principais características de Karl Marx eram seu bom humor duradouro
e sua generosidade sem limites. Sua bondade e paciência eram
verdadeiramente sublimes. Um homem de temperamento menos gentil teria
se desesperado das constantes interrupções, das contínuas
exigências que recebia de todos os tipos de pessoas. Que um
refugiado da Comuna - um homem terrivelmente monótono, a propósito
- que mantivera Marx por três horas mortais, quando finalmente lhe
foi dito que o tempo era urgente e que ainda havia muito trabalho a
ser feito, responderia: "Mon cher Marx, je vous excuse1"
é característico da cortesia e bondade de Marx.
O
mesmo com aquele aborrecido senhor, com qualquer homem ou mulher que
ele acreditasse ser honesto (e ele emprestou seu precioso tempo a
muitos que, infelizmente, abusaram de sua generosidade), Marx sempre
foi o mais amável e gentil dos homens. Sua capacidade de "atrair"
pessoas, fazê-las sentir que ele estava interessado nelas era
maravilhosa.
Eu
ouvi, de homens das mais diversas ideias e posições, de sua
capacidade peculiar de entendê-los e entender suas posições.
Quando ele acreditava que alguém era realmente honesto, sua
paciência era ilimitada. Nenhuma pergunta parecia muito trivial e
nenhum argumento infantil demais para uma discussão séria. Seu
tempo e vasto conhecimento estavam sempre a serviço de qualquer
homem ou mulher que estivesse ansioso por aprender.
Mas
foi em seu relacionamento com as crianças que Marx talvez fosse mais
encantador. Não houve companheiro mais agradável para as crianças.
A memória mais antiga que tenho dele data dos meus três anos de
idade, e "Mohr" (tenho que usar o velho apelido familiar)
me carregou nos ombros em volta do nosso pequeno jardim em Grafton
Terrace, colocando flores no meu cabelo castanho.
Mohr
era, na opinião de todos nós, um cavalo esplêndido. Antes - eu não
me lembro daqueles dias, mas eles me disseram - minhas irmãs e meu
irmão mais novo - cuja morte logo após meu nascimento foi uma dor
ao longo da vida para meus pais - "suportou" Mohr, amarrado
a algumas cadeiras aqueles que "montaram" e que ele teve
que arrastar ... Pessoalmente, talvez porque ele não tinha irmãs da
minha idade, preferiu Mohr como um cavalo de equitação. Sentado em
seus ombros, segurando a grande cabeleira, negra na época, com um
pouco de cinza, me dava magníficos passeios pelo nosso pequeno
jardim e pela terra - agora construída - que rodeava nossa casa em
Grafton Terrace. Eu devo dizer algo sobre o nome de "Mohr".
Na casa todos nós tínhamos apelidos. (Os leitorres de O Capital
sabem o hábil que era Marx para colocar nomes.) "Mohr" era
o nome habitual, quase oficial, pelo que Marx era chamado, não só
por nós, senão também por todos os amigos mais íntimos. Mas
também era nosso “Challey” (suponho que se tratava,
originalmente, de uma corrupção de Charley) e nosso “Old Nick”.
Minha mae era sempre nossa “Mohme”. Nossa velha amiga Héléne
Demuth – amiga de toda a vida de meus pais – se converteu depois
de passar por uma série de nomes em “Nym”. Engels, depois de
1870, era nosso “General”. Uma amiga muito íntima – Lina
Scholer – nossa “Old Mole”. Minha irmã Jenny era “Qui Qui,
imperador da China” e “Di”. Minha irmã Laura (a esposa de
Lafargue) era “o Hotentote” e Kakadou”. Eu era “Tussy” -
apelido que tenho conservado - “Quo Quo, Sucessor do imperador da
China”, e , durante muito tempo, fui “Getwerg Alberich” (dos
Niebelungen Lied).
Mas
se Mohr era um excelente cavalo, tinha outra qualidade superior. Era
um narrador único, sem rival. Eu ouvi minhas tias dizerem que,
quando era criança, era um terrível tirano com suas irmãs às que
“guiava” pelo Markusberg em Treveris a grande velocidade,
servindo-lhe de cavalos e, o que era pior, insistia em que comeriam
os “pasteis” que fazia com uma massa suja e com mãos mais sujas
ainda. Mas elas suportavam os “pasteis” sem um murmúrio, para
escutar as histórias que Karl lhes contava como prêmio por suas
virtudes. E assim, muitos anos depois, Marx lhes contava histórias a
suas filhas. A minhas irmãs – eu era muito pequena então – lhes
contava contos quando iam de passeio, e aqueles contos se mediam por
milhas e não por capítulos.
“Conte-nos
outra milha”, era a petição das duas meninas. Por minha parte, de
muitos contos maravilhosos que Mohr me contou, o mais delicioso era
“Hans Röckle”. Durou meses e meses; era toda uma série de
contos. Lástima que ninguém pode escrever aqueles contos tão
cheios de poesia, engenhosidade e humor! Hans Röckle era um mago ao
estilo de Hoffman, que tinha uma tenda de joguetes e que sempre
estava “à quarta pergunta”. Sua tenda estava cheia das doias
mais maravilhosas – homens e mulheres de madeira, gigantes e anões,
reis e rainhas, trabalhadores e senhores, animais e pássaros tão
numerosos como os da Arca de Noé, mesas e cadeiras, carruagens,
caixas de todas as espécies e tamanhos.
E,
embora era um mago, Hans não podia cumprir nunca com suas obrigações
nem com o diabo nem com o carniceiro e por isso – muito contra sua
vontade – se vi obrigado sempre a vender seus joguetes ao diabo.
Estes atravessavam então por maravilhosas aventuras – que
terminavam sempre no regresso à tenda de Hans Rockle. Algumas destas
aventuras eram tão tristes e terríveis como qualquer das de
Hoffman; Algumas eram cômicas; todas narradas com inesgotável
inspiração, engenhosidade e humor.
E Mohr
também lia para suas filhas. Para mim e para minhas irmãs antes, eu
li todo o Homero, todos os Niebelungen Lied, Gudrun, Dom Quixote, As
Mil e Uma Noites, e assim por diante. Shakespeare era a Bíblia da
nossa casa, sempre na boca de alguém e nas mãos de todos. Quando eu
tinha seis anos de idade, eu conhecia todas as cenas de Shakespeare
de cor.
Ao
completar seis anos, Mohr me deu minha primeira novela: a imortal
Peter Simple. A esta segiu toda uma série de Marryat e Cooper. E meu
pai lia cada um dos contos ao mesmo tempo que eu e os discutia
seriamente com sua filhinha. E quando esta menininha, entusiasmada
pelos relatos marinhos de Marryat, declarou que seria “Pós
capitão” (o
que quer que isto significasse)
e
consultou a seu papai se não poderia “vestir-se como menino” e
“marchar para unir-se a um guerreiro” lhe assegurou que muito
bem, poderia fazê-lo, só que não havia nada a ser dito sobre isso
para ninguém enquanto os planos não estivessem bem amadurecidos.
Mas antes de amadurecer aqueles planos surgiu uma nova mania, a de
Scott, e a menininha se inteirou para seu horror que ela mesma
pertencia, em parte, ao detestado clã dos Campbel. Então iniciaram
os projetos para levantar aos Highlands e reviver aos “quarenta e
cinco”. Devo acrescentar que Scott era um autor a quem Marx voltava
de novo e de novo, a quem admirava e conhecia tão bem como Balzac e
Fielding. E enquanto falava destes e outros muitos livros mostrava a
sua filhinha, ainda que ela não se dava plena conta disto, como
buscar o melhor de cada obra, ensinado-lhe – ainda que ela nunca
pensasse que lhe estavam ensinando, porque se teria oposto a ele –
a tratar de pensar, a tratar de entender por si mesma.
E
da mesma maneira, este homem “amargo” e “amargado” falava de
“política” e de “religião” com sua pequena filha. Recordo
perfeitamente que, quando tinha talvez uns cinco ou seis anos, ao
sentir certas inquietudes religiosas (havíamos ido a uma igreja
católica para ouvir
uma belíssima música)
eu
as confiei a Mohr e então ele me explicou tudo com grande clareza e
diretamente, de tal modo que desde então até agora jamais uma
dúvida voltou a cruzar minha mente. E como recordo seu relato da
história – não creio que jamais havia sido narrada dessa maneira,
antes ou depois – do carpinteiro a quem mataram os ricos,
dizendo-me uma e outra vez: “Afinal, podemos perdoar muito o
cristianismo, porque nos ensinou o culto da criança.”
E
o próprio Marx poderia ter dito “Deixai as crianças virem até
mim” porque, aonde quer que ele fosse, as crianças apareciam de
alguma maneira. Se se sentava no Heath
em
Hampstead
– um
grande espaço aberto no Norte de Londres, em torno de nossa antiga
casa - , se se sentava em um banco, em algum parque, pronto se via
rodeado de um grupo de crianças, que se envolvia
nas relações mais amigáveis e íntimas com esse homem corpulento,
de
longos cabelos e barba, com gentis olhos castanhos. Crianças
totalmente desconhecidas se lhe acercavam, o prendiam na rua…
Recordo que uma vez um pequeno estudante de uns dez anos, deteve sem
nenhuma cerimônia ao temido “chefe da Internacional” em
Maitland Park, pedindo-lhe para "fazer lâminas de barbear".
Depois de uma explicação curta e necessária de que "cambalache"
era, na linguagem da escola, "mudança", os dois sacaram as
facas e as compararam. A do menino só tinha uma lâmina; a do homem
tinha duas, mas não havia dúvidas de que estavam gastas. Depois de
longa discussão se chegou a um acordo e trocaram-se as lâminas,
acrescentando um centavo ao terrível "comandante da
Internacional", em consideração à despesa de suas lâminas.
Como
recordo também, a infinita paciência e doçura com que, uma vez que
a guerra norteamericana e os Blues Books deslocaram
por um momento a Marryar e a Scott, respondia a todas as perguntas e
nunca se queixava de uma interrupção.
E,
no entanto, não deve ter sido um pequeno aborrecimento ter uma
menininha ao lado falando enquanto ele estava trabalhando em seu
grande livro. Mas nunca permitiu que a menininha sentisse que estava
aborrecendo. Recordo que, naquele
momento,
me sentia absolutamente convencida de que Abraham Lincoln necessitava
urgentemente de meus conselhos a respeito da guerra e lhe dirigia
longas cartas que Mohr, é
claro,
tinha
que ler e colocar no correio. Muitos anos depois me mostrou aquelas
cartas infantis, que havia conservado porque lhe haviam divertido.
E
assim, nos anos de minha infância e minha adolescência, Mohr foi o
amigo ideal. Na casa todos éramos bons camaradas e ele era sempre o
mais gentil e de melhor humor. Ainda durante os anos de sofrimento,
quando estava constantemente doente, quando sofria de carbúnculos,
ainda até o final...
Eu
escrevi estas lembranças dispersas, mas estariam incompletas se não
acrescentasse umas palavras acerca de minha mãe. Não é um exagero
dizer que Karl Marx não haveria sido jamais o que foi sem Jenny von
Westphalen. Jamais as vidas de dois seres – ambos notáveis – se
identificaram tanto, foram tão complementares um do outro. De
extraordinária beleza – uma
beleza que trouxe alegria e orgulho até o fim e que despertou
admiração em homens como Heine e Herwegh e Lasalle - , de
uma mente e uma engenhosidade tão brilhantes como sua beleza, Jenny
von Wetsphalen era uma mulher como só se encontra uma em um milhão.
Quando crianças, Jenny e Karl jogaram juntos; de jovens – ele com
dezessete anos, ela com vinte e um – se comprometeram em matrimônio
e, como Jacob por Rachel, ele
fez méritos por ela sete anos antes de se casar. Depois, através
dos anos de tormentas e dificuldades, de exílio, tremenda pobreza,
calúnias, dura luta e esforçada batalha, os dois, com sua fiel
amiga Héléne Demuth,
se enfrentaram ao mundo sem titubear, sem retroceder,
sempre no lugar do dever e do perigo. Na verdade posso dizer dela,
com palavras de Browning:
É,
imortalmente, minha noiva.
Nenhuma sorte pode variar meu amor
ou deteriorar-se ao longo do tempo.
Nenhuma sorte pode variar meu amor
ou deteriorar-se ao longo do tempo.
E
penso algumas vezes que um laço quase tão forte entre eles como sua
devoção à causa dos trabalhadores era seu imenso senso
de
humor. Não
há dúvida de uqe ninguém tem gozado mais de um bom chiste que eles
dois. Uma e outra vez – especialmente se a ocasião exigia decoro e
compostura - , eu os vi rir até as lágrimas escorrerem pelas suas
bochechas e, mesmo aquelas inclinadas a serem incomodadas por tamanha
leveza, não podiam fazer mais que rir com eles. E
quantas vezes eu os vi sem ousar olhar um para o outro, sabendo
os dois que
se trocassem um olhar, não poderiam conter o riso. Ver
aos dois com os olhos fixos em qualquer outra coisa, para todo o
mundo como duas crianças de escola, sufocados de um siso contido que
por fim, apesar de todos os esforços, havia de estalar, é uma
recordação que não trocaria por todos os milhões que eles dizem
que eu herdei. Se, apesar de todos os sofrimentos, a luta, as
decepções, era um
casal alegre e o amargado Júpiter Tonante não passa de ser uma
ficção da imaginação burguesa. E, se nos anos de luta houve
muitas desilusões, se tropeçaram com uma estranha intratidão,
tiveram o que poucos possuem: verdadeiros amigos. Donde se conhece o
nome de Marx, se conhece também o nome de Friedrick Engels. E os que
conheceram a Marx em sua
casa
também se lembram do nome da mulher mais nobre que já viveu, o
honrado nome de Héléle Demuth.
Para
os que estudam a natureza humana não parecerá estranho que este
homem, que era tão grande lutador, fora ao mesmo tempo o mais
bondoso e gentil dos homens. Entenderão que só podia odiar tão
ferozmente porque era capaz de amar com esta profundidade; que se sua
caneta
afiada podia
prender uma alma no inferno como o próprio Dante era porque se
tratava de um
homem leal e terno; que
seu humor sarcástico podia atacar como um ácido corrosivo, este
mesmo humor podia ser um bálsamo para os preocupados e aflitos.
Minha mãe morreu em dezembro de 1881. Quinze meses depois, ele, que
nunca se havia separado dela em vida, foi reunir-se com ela na morte.
Depois da caprichosa febre da vida, os dois repousaram. Se ela foi
uma mulher ideal, ele, bom, ele “era
um homem, em toda e qualquer situação, como eu não esperava
encontrar um outro tal.”
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