Dia da heroicidade — Relembrando um encontro com os bravos combatentes
- Rosana Bond
- A Nova Democracia - Ano V. nº 31, setembro de 2006
No dia 19 de junho de 1986, o governo peruano,
comandado pelo então gerente Alan García, efetuou uma perversa
operação de extermínio dos prisioneiros de guerra, pertencentes ao
Partido Comunista do Peru.
Mobilizando exército, marinha, força
aérea e polícia, o governo consumou um dos mais infames genocídios
da história da América Latina. Passados 20 anos de total impunidade
e com a reeleição de Garcia à presidência do Peru, é preciso
relembrar essa data, marcada como o Dia da Heroicidade.
E
o fazemos rememorando um encontro que tivemos com os bravos
combatentes do PCP, um ano antes de seu assassinato, numa viagem
feita ao tenebroso presídio da ilha do Frontón, no Pacífico.
Tal
relato é um resumo do que publicamos no livro Peru:
do império dos incas ao império da cocaína.
Alan
García assumiu o governo em 1985 com um discurso de combater os
guerrilheiros "sem violar os direitos humanos". No entanto,
a perversidade com que conduziu sua política logo trataria de
desmascará-lo.
Nos
dias 18 e 19 de junho de 1986 estourou o maior escândalo da gerência
de García no que toca à violência: o assassinato de cerca de 300
prisioneiros de guerra e membros do Partido Comunista do Peru, nos
presídios de Lurigancho,
Callao
e na ilha de Frontón.
O
ataque foi considerado o fato mais sangrento da história carcerária
do país, comparável ao de Atica, no USA. Definido até pela
imprensa monopolista, a exemplo do New York Times, como um "horrível
e premeditado assassinato de prisioneiros políticos".
Efetivamente,
desde o início de junho o Partido Comunista do Peru divulgava notas
denunciando um plano de extermínio1. Os prisioneiros de
guerra estavam em campanha contra sua transferência ao novo cárcere
de Canto Grande, visto por eles como o mais terrível campo de
concentração.
No
dia 18 de junho, os prisioneiros apresentaram um documento com 26
solicitações reconhecidas, mais tarde, como "justas" por
um grupo de investigação, presidido pelo prêmio Nobel Adolfo Perez
Esquivel. Porém o governo negou qualquer negociação. Às 11 da
manhã do dia 19, Alan García autorizou a entrada de assassinos de
elite nas prisões. Começava a Operação
Selvagem e, com ela, 96 horas de
horror, enquanto que os combatentes do Exército Guerrilheiro
Popular, totalmente desarmados, enfrentaram bravamente o inimigo.
A
Marinha invadiu El Frontón
às 4 e meia da tarde. Explosões estremeceram a ilha. O ataque por
mar, terra e ar causou a morte da maioria dos prisioneiros, sendo que
70 sobreviveram. Mais tarde, somente 30 apareceram vivos.
A
Associação dos Advogados Democráticos denunciou que dos 70
sobreviventes, vários tinham sido levados à base da Marinha, na
ilha de San Lorenzo, e em seguida torturados e assassinados. Outros
sobreviventes foram fuzilados no própio Frontón. Em Santa Bárbara,
prisão feminina, a violência não foi menor, com várias
presidiárias assassinadas e feridas.
Em
1986, uma Resolução de agosto, que concluia dizendo Glória
aos heróis caídos, proclamava o 19
de junho como o Dia
de la heroicidad, reconhecido por
vários partidos em todos os continentes.
Dedos-duros por aqui...
Seus
nomes não eram Pedro e José. Não sei como se chamavam e
provavelmente jamais saberei. Com nitidez lembro apenas do susto que
levei no dia 19 de junho de 1986, quando um funcionário da Folha de
Londrina aproximou-se de minha mesa, na redação do jornal, e
entregou uma telex que acabara de vir de uma agência de notícias:
— Olha
aí, Rosana, a coisa está feia no Peru. Os soldados destruíram
prisões e mataram um monte de presos! Aqui falam de uma ilha... Não
foi lá que você esteve entrevistando aqueles caras, ano passado?
Corri
para o setor fotográfico. Queria ver as fotos chegadas de Lima, como
se fosse possível identificar algum sobrevivente no meio dos
escombros. Cheguei a consultar, depois, as listas de mortos. Bobagem.
Porque Pedro e José foram nomes inventados por mim. Não existiam.
O
que existiu mesmo foi uma história inacreditável. Estava de férias
no Peru e algumas pessoas, sabendo que eu era jornalista,
contataram-me. Perguntaram se aceitaria "correr o risco" de
ir até o Frontón,
no Pacífico, onde estavam detidos centenas de homens acusados de
serem do Partido Comunista. Não havia tempo para relutar. Concordei.
Bem
cedo, na manhã de 20 de abril de 1985, cheguei ao cais do porto de
Callao, próximo a Lima. Tudo estava planejado. Restava, porém, o
mais importante: saber se os policiais me deixariam entrar na ilha.
Em
1986, uma Resolução de agosto, que concluia dizendo Glória aos
heróis caídos,
proclamava o 19 de junho como o “Dia de la heroicidad”,
reconhecido por vários partidos em todos os continentes
proclamava o 19 de junho como o “Dia de la heroicidad”,
reconhecido por vários partidos em todos os continentes
Naquele
dia os prisioneiros receberiam a visita de mulheres e crianças.
Havia umas 100 dessas familiares no cais. Uma delas aproximou-se e
sussurou:
— Não
converse com ninguém, não podem saber que você é jornalista. Não
é seguro, há muitos dedos-duros por aqui...
Avisou-me
que caso necessário eu seria apresentada aos policiais, na ilha,
como a "parente brasileira" de uns certos irmãos Suárez.
Súbito El Frontón!
O
primeiro grupo, com umas 60 pessoas, inclusive eu, foi amontoado numa
lancha. Íamos todas dividindo espaço com sacolas, pacotes, bolsas,
trouxas, tonéis com água e querosene. O resto das parentes iria num
outro barco.
O
nosso partiu primeiro. Logo ficamos sós no oceano. Começaram as
primeiras ondas. Grandes, enormes. Quando estávamos navegando há
uns 40 minutos, surgiu uma silhueta. Era a ilha de San Lorenzo, a
maior base da Marinha de guerra peruana. Quinze ou 20 minutos mais
tarde uma faixa de terra desenhou-se diante de nós. As pessoas no
barco se agitaram, conversaram entre si, apontaram. Era o Frontón!
À
medida em que nos aproximávamos víamos um quadro fantástico,
inverossímil. No topo de um pavilhão, à direita da ilha, tremulava
soberana uma imensa bandeira vermelha com a foice e o martelo. Abaixo
dela, na parede do prédio, uma pixação enorme e definitiva: "A
rebelião se justifica!"
Como
formigas, centenas de homens se espalhavam por lá, saudando-nos à
distância com os braços erguidos. Alguns empunhavam bandeiras
vermelhas, que balançavam de um lado a outro, bem lentamente. Sem
importarem-se com a presença de policiais na lancha, de repente as
familiares começaram a cantar. Um canto solene, sentido, poderoso:
Gonzalo las masas rugen
y los Andes se estremecen
expresan pasión ardiente
fé segura y acerada
Y el pueblo escucha atento
Acelera su jornada
Que es Gonzalo canto al fuego!
Gonzalo es lucha armada!
Algumas
mulheres choravam. Aquilo era muito forte...
Finalmente
a embarcação atracou. Os guardas nos puxaram para cima, pelos
braços, como se fôssemos trastes. Fomos colocadas em fila. No final
do rústico trapiche, dois soldados recolheram nossos documentos
pessoais. Entreguei minha identidade e caminhei a uma outra fila à
direita, em frente à uma construção de madeira em forma de "U",
a qual presumi ser a administração do presídio.
Demoramos
um pouco na revista, feita por policiais femininas. Uma delas pareceu
desconfiar — realmente, eu era bem diferente do tipo peruano comum
— e indagou quem era o parente que eu iria visitar. Por um instante
senti um frio na barriga, mas consegui me controlar: "Los
hermanos Suárez..."
Ela
continuou me olhando e ia perguntar mais alguma coisa, mas as
senhoras perspicazmente reclamaram da demora e a guarda desistiu.
— Vamos,
companheira, rápido! — me pediu uma das familiares, enquanto
percorríamos os cerca de 40 metros de areia que nos separavam de uma
muralha à direita. Aquele muro alto demarcava a área destinada aos
prisioneiros.
Bom
dia, companheira
O
portão do muro estava aberto. Quando o atravessei não acreditei!
Centenas de guerrilheiros postados frente à frente, formando um
corredor, nos receberam batendo palmas, sorrindo, agitando suas
bandeiras vermelhas.
— Bom
dia, companheira! — me disse um.
— Seja
benvinda! — saudou-me outro, mais adiante.
Enquanto
os detidos abraçavam-se com suas parentes, fui apresentada a um
jovem. Eu e o rapaz passamos ao lado da construção branca que havia
visto do mar. Ele informou que o prédio, embora branco, se chamava
Pavilhão Azul. Achei engraçado.
A
seguir contornamos uma torre de pedra (uma guarita desativada) e
descemos uma ribanceira em direção ao mar. Naquele barranco os
guerrilheiros haviam construído degraus, patamares feitos de
pedregulhos, formando uma arquibancada. Nos dias de visita os
assentos eram protegidos com lençóis e colchas, como se fossem
toldos. Na parte mais baixa e plana, ao nível da praia, os presos
tinham feito uma espécie de palco: uma mureta semicircular, com
cerca de 40 centímetros de altura, recheada com terra e areia bem
socadas.
Sentamos
num dos degraus do barranco, respirando a maresia espessa. O rapaz
quis saber o nome do jornal onde eu trabalhava, qual a linha
editorial, etc. Ou seja, tudo aquilo que já tinha cansado de
responder nos dias que antecederam a ida à ilha. Quando ele
terminou, senti que finalmente podia indagar sobre a guerra popular.
— Estamos
seguros que a guerra popular é a única alternativa correta para o
Peru — afirmou.
Prosseguiu
decidido:
— Carregamos
conosco a certeza de que nossa luta é justa e será vencedora porque
estamos amparados pelo Pensamento Guia do Presidente Gonzalo2,
do camarada Mao Tsetung e do marxismo-leninismo.
E
concluiu seguro do que dizia:
— Somos
o farol que guia a revolução mundial. E estamos vencendo. O regime
peruano, podre e burocrático, está se vendo obrigado a revelar sua
verdadeira cara nesta guerra. Estão matando pessoas
incontrolavelmente porque já não conseguem conter o ímpeto do povo
em armas.
Luminosa trincheira
Prisioneiros, membros do PCP, rebelados na
ilha de Fronton
Logo
fomos interrompidos pela chegada de dois outros prisioneiros. Um
deles tinha cabelos negros e usava um boné azul. O outro era branco
e loiro. Objetivo e brusco, perguntou:
— Como
podemos ter certeza de que você é realmente jornalista?
Irritada,
informei que ali estavam mulheres que haviam visto minhas credenciais
e sugeri que fosse resolver suas dúvidas com elas.
Efetivamente
foi. Mas logo regressou. Trazia com ele dois guerrilheiros. Agora
gentil e solícito, afirmou que tudo já estava esclarecido. Pediu-me
desculpas e disse que ele próprio e todos os seus camaradas estavam
muito contentes com minha presença. Inclusive informou-me que eu era
a primeira repórter da América a ser aceita por eles na ilha.
Soube, posteriormente, que uns três repórteres europeus tinham
estado lá.
Informou
que dois dos seus, que trouxe com ele, estavam à disposição, a
partir daquele momento, para todas as perguntas que eu desejasse
fazer. Foi então que conheci Pedro e José. Eles me fizeram
companhia o resto do dia.
José
tinha uns 18 anos, mas parecia mais novo. Pedro aparentava ter 30
anos. Caminhamos até umas pedras, à beira do mar. Ali, observando o
oceano, conversamos sobre muitas coisas. Guerra, música, genocídio,
poesia, dinamite. José, a meu pedido, cantou alguns hinos
revolucionários. Pedro ensinou-me algo do huayno
da sua terra, um ritmo tradicional dos Andes, que envolve música e
dança.
Na
hora do almoço, fomos os três para a arquibancada, onde uma
família, muito amável, nos serviu panquecas, arroz, batatas e
frango. Outros prisioneiros vieram comer perto de nós. Comentei que
sentados ali na frente do mar, com as famílias conversando animadas,
as crianças brincando, podíamos passar por alegres veranistas. Todo
mundo riu.
— A
gente mesmo já apelidou isso aqui de "Balneário Apolônia!
(Pelo que consegui entender, em meio às gargalhadas, Apolônia era
um reduto da burguesia peruana no verão).
— De
vez em quando conseguimos pescar e promover torneios de voleibol,
natação, música, dança e declamação — contou um dos presos.
Hoje,
passados 20 anos do genocídio, ainda é triste lembrar daquelas
pessoas. A aparente tranquilidade que vi naquele dia escondia, atrás
de si, histórias dramáticas.
— Conseguimos
transformar esse campo de concentração em uma luminosa trincheira
de combate — sentenciou José.
Todos
concordaram. Alguém contou que nos primeiros tempos, quando os
guerrilheiros foram trancafiados na ilha, os guardas colocavam vidro
moído na comida, pedaços de ratos apareciam boiando na sopa, a água
era misturada com querosene. Com muita luta, acabaram com aquilo.
A
conversa se anima. Outros presos aproximam-se. Um deles começa a
falar do cerco às cidades a partir do campo; outro da vitória que
chegará um dia; da repressão do governo que já somava milhares de
mortos e desaparecidos; outro das tropas paramilitares formadas pelo
Exército para combater a guerrilha.
Trabalhar, estudar
De
repente chegou o homem de boné azul, o mesmo que tinha aparecido
antes com o loiro.
Sorriu
com simpatia, sentou-se e começou a explicar que todo aquele
ambiente positivo, tanto no que tocava ao moral dos muchachos
quanto ao aspecto visual do lugar que nos rodeava, foi resultado de
um paciente trabalho coletivo executado contra a vontade dos guardas:
— Este
lugar onde estamos, por exemplo, era um terreno imprestável, tomado
por pedras, lixo, aranhas, baratas e ratos. Usando apenas nossas mãos
removemos uma tonelada de detritos para construir isso aqui.
Para
a convivência do dia-a-dia, esclareceu, eles mesmos dividiram os
presos em destacamentos de cinco pessoas. Cada grupo tinha um chefe
temporário que organizava as tarefas. Todos se revezavam para
cozinhar, fazer a limpeza, lavar roupas, dar aulas, etc.
Conseguimos transformar esse campo de concentração em uma luminosa trincheira de combate"
sentenciou José
Com
medicamentos trazidos pelos familiares, eles instalaram uma pequena
farmácia, inclusive com atendimento médico. Através de doações
também obtidas por seus parentes, implantaram uma biblioteca com uns
400 volumes — onde se encontrava desde as obras do Presidente Mao e
outros pensadores marxistas-leninistas, até livros de biologia,
matemática, geografia e espanhol3.
Igualmente
com matéria-prima proporcionada pelas famílias e amigos, mantinham
uma oficina que produzia artesanatos em pedra e palha — que depois
eram vendidos ou presenteados, mas que principalmente serviam para a
prática de habilidades manuais. Criaram além disso uma escola, onde
os professores eram os próprios presos. Nela não somente se
alfabetizava , mas também se ministrava conhecimentos de álgebra,
anatomia, história. E teoria política, claro.
No
entanto, o que mais me impressionou foi o trabalho de copismo que
executavam. Como não possuíam máquinas de escrever e mimeógrafo,
encontraram um outro jeito de elaborar edições de documentos
políticos do Partido, peças de teatro, poesias, canções, textos
para discussões internas. Tudo era copiado à mão. Com paciência
chinesa e capricho de monges, "fabricavam" livros.
De
repente, ouvi uma canção andina. Pensei que tinham ligado um rádio.
Mas não.
— Vamos
lá, companheira, os muchachos
estão tocando — me disseram. Uns 20 guerrilheiros armados com
zampoñas
velhas, violões com cordas faltando, charanguitos
remendados e um bombo leguero
com o couro meio frouxo, agora ocupavam o palco à beira-mar.
— Sabes
dançar a lo peruano ? — alguém me perguntou.
— Eu?!
Muito mal, samba.
Então
a coisa virou uma folia. Diversas pessoas foram dançar no palco para
que eu aprendesse. Outras cantavam junto e batiam palmas. Animado com
a bagunça, o mascote dos prisioneiros, o cachorrinho vira-lata Puka
(Vermelho, na língua quêchua) latia e abanava o rabo. Alguém me
puxou e me colocou no palco com todo mundo. Não me saí muito mal,
mas não conseguia parar de rir. Nem eles.
Um tesouro e um chapéu
No
meio da tarde, Pedro e José me convidaram para conhecer o alojamento
dos presos, o tal Pavilhão Azul, que era branco. Talvez com uns 10 m
X por 30 m, tinha dois andares. Na parte externa, a imensa bandeira
vermelha que eu vira do mar continuava hasteada. E a pixação na
parede, impossível de ser ignorada: "La
rebelión se justifica!".
Entramos.
No térreo, à direita, estavam os "sanitários": não
passavam de buracos no chão que serviam como latrinas e dois canos
de metal na parede, eternamente secos, que um dia teriam sido
chuveiros.
A
seguir vinha um grande salão, sem celas. O aspecto do conjunto,
banheiro e salão, era miserável. Mas tudo mantido imaculadamente
limpo pelos presos. No salão uma sequência de beliches, nos dois
lados, formava um corredor no meio. No outro extremo, demos de cara
com uma parede onde estavam fotografias de Marx, Lênin e Mao. Abaixo
delas havia uma mesa, usada pelos prisoneiros para realizarem suas
assembléias e darem aulas. No andar superior, igualmente havia duas
filas de camas. Ali também funciona-vam a cozinha, a biblioteca, a
enfermaria e a oficina de artesanato.
Ao
deixarmos o pavilhão, ouvimos o canto de uma mulher índia. O som
saía de dentro da torre que um dia servira como sentinela. Era um
lamento cantado em quêchua. Ela dizia que seu marido estava
desaparecido desde 1983. Que desde aquela época andava lhe
procurando e que nem ali na ilha conseguira encontrá-lo.
Criaram
além disso uma escola, onde os professores eram os
próprios presos. Nela não somente se alfabetizava , mas também
se ministrava conhecimentos de álgebra, anatomia, história.
E teoria política, claro
próprios presos. Nela não somente se alfabetizava , mas também
se ministrava conhecimentos de álgebra, anatomia, história.
E teoria política, claro
Entramos
na guarita. No quadrado apertado, úmido, com grossas paredes de
pedra tomadas por musgos, havia pouquíssima luz. No chão de terra
batida bailavam algumas mulheres e homens. Era uma dança triste,
dolorosa. As cabeças baixas, concentradas na voz da mulher que
narrava a sua tragédia.
Fiquei
num cantinho, perto da entrada. Mas minha presença logo foi
percebida. E então rapidamente o clima mudou. Uma quena
(flauta) começou a tocar uma musiquinha brejeira. Formaram um
círculo, deram-se as mãos e timidamente me convidaram a participar.
Todos os guerrilheiros que estavam ali dentro na torre eram indígenas
dos Andes. E, seguramente, camponeses. Mãos calosas tomaram as
minhas e, com doçura, me ensinaram os passos. Poucas vezes na vida
me senti mais feliz. Passava das 5 horas quando vi um movimento no
pátio e notei que era hora de partir. José saiu correndo e logo
voltava carregando uma pilha de papéis, todos manuscritos.
— O
que é isso? — indaguei.
— Nossos
poemas e canções. E as respostas às perguntas que não lhe
respondemos... — disse, com um sorriso travesso.
Folheei
o material e levei um susto! Ali estava um tesouro para qualquer
jornalista: um relato detalhado de como o Partido preparou e realizou
um dos seus ataques, informes de reuniões internas, todos documentos
jamais divulgados pela imprensa peruana ou brasileira.
Para
minha segurança, Pedro não deixou que eu colocasse os papéis na
bolsa. Os textos foram distribuídos nas sacolas das mulheres,
enquanto víamos, ao longe, os soldados preparando as lanchas no
trapiche.
A
despedida foi muito triste. Recebi abraços de guerrilheiros com os
quais sequer havia falado. Deram-me um chapéu de palha feito na
oficina deles, onde estava escrito à caneta na aba interna: "Com
muito carinho comunista, os melhores filhos da classe te fazemos
chegar este presente".
Partimos.
Logo que as lanchas cruzaram as primeiras ondas, na ilha apareceram
de novo as bandeiras vermelhas e as centenas de punhos erguidos.
Pouco depois o dourado do fim do dia foi tragado pela neblina, pela
noite e pelo frio. Demoramos para encontrar o cais de Callao. É que
o porto e a cidade estavam totalmente no escuro. O PCP, mais uma vez,
tinha acabado de explodir as torres de energia elétrica...
1 Em 4 de outubro do ano anterior já havia ocorrido o massacre de 30 prisioneiros de guerra no Penal de Luringancho. O novo genocídio era denunciado pelo Partido Comunista do Peru, enquanto que a falsa esquerda (as legal e ilegal) não só se omitia em protestar, mas fazia coro com a reação acusando o PCP de ser uma organização "narco-guerrilheira". Ao contrário, o PCP sempre combateu o tráfico. Mas a dupla Fujimori-Montesinos, administração que sucedeu a Alan Garcia, era reconhecidamente ligada ao grande tráfico, fato que se somava a outros grandes crimes — como o de traição à pátria -, mas suas prisões não respondem por isso.
Ainda sobre a colaboração com o fascismo: na época do morticínio havia duzentos militares ianques como assessores do exército peruano, somente na zona do Alto Huallaga. O social-imperialismo russo colaborava com a repressão mantendo quatrocentos assessores nas Forças Aéreas. Esse mesmo governo peruano contou, entre outros, com o apoio da Coréia do Norte (!), da antiga República Federal Alemã e de Miterrand no negócio de armas. 2 Presidente Gonzalo, nome adotado pelo Partido Comunista del Perú para o Doutor Abimael Guzmán (nascido a 3 de dezembro de 1934), seu principal dirigente e chefe da revolução naquele país. A prisão do Presidente Gonzalo aconteceu em setembro de 1992. Desde então, os tribunais contra-revolucionários adiam seu julgamento, e as suas verdadeiras afirmações jamais foram concretamente atestadas. 3 Muitos dos camponeses do Partido Comunista do Peru aprenderam a ler e escrever dentro dos presídios, através de aulas ministradas pelos seus próprios camaradas.
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