Há duas semana, Jair Bolsonaro postava um vídeo em suas redes sociais, em que um policial bastante amedrontado filmava uma manifestação da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) no Acampamento Manoel Ribeiro, última parte retomada da fazenda Santa Elina, entre os municípios de Corumbiara e Chupinguaia, sul de Rondônia. Na verdade, há dias toda a imprensa pró-latifúndio daquela região já repercutia a morte de dois policiais, em área próxima do Acampamento Tiago dos Santos, no município de Nova Mutum-Paraná, no norte desse estado. Acusavam (e seguem acusando) camponeses deste acampamento, sem qualquer prova, indício ou argumento digno de seriedade, pelos assassinatos de tais policias; essa imprensa venal só difundiu a versão da polícia. Segundo essas mesmas informações policiais, estes crimes teriam ocorrido em circunstâncias bastante suspeitas. A partir da comunhão das forças reacionárias do estado e a deixa de Bolsonaro, preparou-se o caldo de cultura para justificar o massacre das mais de 600 famílias acampadas (2,4 mil pessoas) e garantir o açambarcamento daquelas terras, griladas há anos por “Galo Velho”, um dos maiores latifundiários da região, condenado e preso por compra de sentenças e falsificação de documentação de registro de terras e, segundo as entidades democráticas do estado, notório financiador da pistolagem.
Para maiores detalhes e sobre desdobramentos dos episódios, recomendamos a leitura da nota da Comissão Nacional das Ligas dos Camponeses Pobres (LCP) e o comunicado do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebraspo) e da Associação Brasileira de Advogados do Povo (Abrapo). Da nossa parte, parece fundamental frisar alguns pontos, de abrangência política nacional:
1) Já havíamos chamado a atenção, em editoriais anteriores, para a conexão entre grilagem de terras, concentração fundiária e as queimadas que devastam a Amazônia Legal e o Pantanal. Não são os camponeses, quilombolas e povos indígenas os devastadores da floresta, e sim, os latifundiários ladrões de terras públicas devolutas que se apropriam daquele território à margem da lei, contando, para isso, com a conivência ou mesmo ação direta dos diferentes órgãos governamentais, incluída a proteção de forças policiais quando dos conflitos sobre estas.
2) Como consequência do ponto anterior: pretender discutir uma “questão ambiental” separada da questão agrário-camponesa é favorecer a reação – e no final das contas, o latifúndio devastador – a lançar uma cortina de fumaça sobre o secular problema, jamais solucionado em nossa história, da formação e das relações de propriedade da terra no Brasil. Portanto, gritar “fogo na floresta”, mas calar-se diante da criminalização dos camponeses, ou pretender priorizar as “pautas alimentares” dissociadas da aguda luta de classes no campo, é uma incoerência lógica e um crime político.
3) A grilagem de terras públicas na Amazônia não é um projeto deste ou daquele governo, e sim, um projeto de Estado. Sobretudo desde o final dos anos de 1970 – com a expansão da fronteira agrícola, patrocinada pelo regime militar – grilagem, monocultura, devastação ambiental e pistolagem formam um ciclo vicioso e inseparável. Embora a Constituição de 88 preveja a desapropriação de terras improdutivas e/ou griladas para fim de reforma agrária, estes dispositivos nunca foram implementados. Ao contrário: nas últimas décadas, na medida em que a carcomida economia de capitalismo burocrático desta semicolônia tornou-se mais e mais dependente da exportação de commodities, mais aquele círculo de ferro de formação da grande propriedade e sua alta concentração versus expropriação dos camponeses e povos originários se fechou. Não à toa, vimos um amplo espectro político, que vai de Bolsonaro, passando pelos altos mandos militares até os supostos “democratas” dos meios de comunicação fazer coro único, qual seja, a criminalização mais odiosa e nojenta da luta pela terra. Dentre o oportunismo, ouriçado com a miragem de capturar alguns cargos secundários na farsa eleitoral – apresentando-se como “o mais fiel defensor das instituições” – a regra geral é o silêncio. Um silêncio barulhento e significativo.
4) Bolsonaro, o Fraco, está hoje preso entre duas cordas: de um lado, precisa se desfazer de algumas cabeças e posições da extrema-direita, de modo a cumprir a sua parte no armistício temporário que lhe foi imposto desde a prisão de Fabrício Queiroz. De outro lado, ao fazer este movimento de aceno à direita militar e à centro-direita parlamentar dita tradicional, arrisca queimar parte das suas bases mais sólidas nos altares da “governabilidade”, e tornar-se mais vulnerável à mesa de negociações com seus rivais. Inevitavelmente, portanto, buscará recuperar terreno perdido na frente judicial-parlamentar radicalizando o discurso na dita “pauta de costumes” e no aceno às “milícias” do campo e da cidade. Boquirroto, não se preocupa tanto com cálculos a médio e longo prazo (como os generais, que evitam estardalhaços) e sim com o aqui e agora, que é o tempo da sua própria sobrevivência. Pode parecer paradoxal, mas a exposição por ele feita mais dificultou do que favoreceu a perpetração do massacre em Rondônia.
5) O fator decisivo para que não ocorresse até agora o banho de sangue prometido pela Polícia Militar de Rondônia foi a organização e disposição de resistência dos próprios camponeses do Acampamento Tiago dos Santos. Esta firmeza angariou uma ampla solidariedade entre diferentes setores democráticos, não só naquele estado como a nível nacional, e deteve pelo menos por enquanto a mão assassina das forças policiais e paramilitares do latifúndio. Isto prova que a mobilização, politização e organização dos oprimidos pode muito, ao contrário do que dizem e fazem os “movimentos sociais” do oportunismo, que veem fascismo em tudo e nos chamam a fugir para as cúpulas, isto é, para os acordos e arranjos com as frações descontentes das classes dominantes. A linha independente do movimento de massas, dirigido pelo proletariado, é invencível; ao contrário, a conversão da luta popular em mero apêndice da política oficial burguesa, além de só nos ter trazido profundas derrotas nos últimos anos (veja-se o caso das “reformas” trabalhista e previdenciária, por exemplo), faz perpetuar os massacres que se diz buscar evitar: massacres ora concentrados, ora espaçados no tempo e no espaço. É isso o que têm a oferecer as direções burguesa e pequeno-burguesa sobre o movimento de massas.
6) A questão agrário-camponesa é o calcanhar de Aquiles do velho Estado reacionário brasileiro. Por mais que se queira eludi-la com sofismas referentes à suposta “modernização do campo brasileiro”, ou apagá-la no altar de “novos problemas”, como o climático-ambiental, enquanto a questão da posse da terra pelos que nela trabalham não for solucionada veremos reeditados periodicamente poderosos ciclos de revoltas e lutas de classes agudas no campo. Trata-se de dezenas de milhões de pessoas exploradas até o limite das suas forças, literalmente sugadas para enriquecer cerca de 1% de grandes latifundiários, ao mesmo tempo, grandes capitalistas. Estes vastos desertos verdes de monocultura chocam-se de modo objetivo com os interesses de quase todas as demais classes sociais: com os camponeses, quilombolas e povos indígenas, vítimas imediatas da sua sanha predatória; das chamadas “classes médias” do campo, como pequenos e médios comerciantes e fazendeiros, que se veem privados de mercado consumidor e força de trabalho, pois o latifúndio, como se sabe, emprega muito pouco e expulsa o povo dali; dos milhões e milhões de proletários e semiproletários das cidades, que têm na sua pele gravada a diáspora camponesa, e sofrem com o inchaço urbano e a fome, o desemprego e as mazelas dele decorrentes – resultados de um capitalismo burocrático cujo sustentáculo primário é o latifúndio; de todos os que vivem de salário ou rendimentos fixos, achatados dado ao grau de espoliação da economia camponesa fornecedora de alimentos de primeira necessidade do povo, principal formador do valor da força de trabalho. Isto vale também para a média burguesia, que vê o mercado interno ser restringido com severidade pela não-incorporação do campo (o latifúndio, além de empregar muito pouco, importa quase tudo o que necessita para produzir). A desvalorização da moeda, que torna as commodities aqui produzidas mais competitivas no mercado mundial, golpeia o poder de compra dos trabalhadores; as exportações recordes que auferem superlucros ao latifúndio encarecem os mesmos itens no mercado interno. Numa palavra, quando o latifúndio ganha, a imensa maioria da nação perde.
Esta contradição aguda cobra uma solução. Há tempos a Amazônia e as suas lutas não estão mais à margem da história.
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