Um interrogatório revelador da ocupação
Transcrevemos o relato do interrogatório e da detenção de George Khoury, cidadão americano de origem palestiniana no aeroporto Ben Gurion. O texto foi traduzido da versão francesa publicada a 4 de Agosto aqui.
Esta história merece ser lida até ao fim, porque ela dá-nos uma ideia do que são os interrogatórios nas fronteiras de Israel e a dimensão do desprezo pelo ser humano neste Estado colonialista fundado sobre o racismo e o apartheid. Também aqui se verá como a maior parte dos governos e das companhias aéreas estão ao serviço da repressão do Estado sionista.
Nasci em Jerusalém ocidental (designado como sendo a parte judaica de Jerusalém), em 1945. Sob uma chuva de balas que voavam por cima das nossas cabeças, o meu pai agarrou-nos a mim e ao resto da família e fugimos para a sua cidade natal, Naplus, na véspera da criação do Estado de Israel em 1948.
Ficámos em Rafidia-Naplus até 1952, depois mudámo-nos para Ramallah onde o meu pai conseguiu um emprego nos correios. Fui para a escola religiosa da paróquia e depois entrei no seminário latino de Beit Jala em 1961 para estudar para padre. Em 1968, abandonei o seminário onde estudei francês e latim para além de filosofia e teologia. Fui para os Estados Unidos em setembro de 1969 e entrei na Universidade de Seton Hall em South Orange, New Jersey, onde me formei em francês e espanhol e, em 1975, obtive o meu mestrado na Universidade de Montclair em New Jersey.
Mudei-me para Chigado em 1975, onde ensinei línguas estrangeiras num liceu. Integrei o programa de doutoramento em teologia em 1983 na Graduate Theological Union de Berkeley na Califórnia e doutorei-me em 1990. Ensinei línguas no San Mateo College, em Skyline, assim como na Westmoor High School. Entrei para o programa diaconal em 2012, porque tenho a intenção de servir as várias comunidades eclesiais enquanto diácono na Arquidiocese de São Francisco.
Depois de ter passado 21 anos sem ver Jerusalém e o meu país de origem, a Palestina, decidi voltar, desta vez como cidadão americano com passaporte americano obtido em 1975. A viagem deveria ser uma peregrinação com o padre Bernard Poggi, assim como uma visita muito tardia à minha pátria para ver os meus amigos e família, que não voltei a ver desde há décadas. Uma vez chegados ao aeroporto de Ben Gurion em Telavive, autorizaram o padre Bernard a entrar. Depois, quando chegou a minha vez, fui levado por uma soldada para uma “sala verde” para um interrogatório.
Um agente de segurança do aeroporto (que penso ser um agente do Shin Bet) dirigiu-se a mim:
– Agente: “Com que então, veio pelo aeroporto Ben Gurion?”
– Eu: “Sim, o que é que isso tem de mal?”
– Agente: “Você não pode fazer isso”.
– Eu: “Porquê? Tenho um passaporte americano. Vim com o padre Bernard para passar umas semanas em Jerusalém, só isso. Viemos fazer uma peregrinação e ver alguns amigos e familiares”.
– Agente: “Não, não, não pode ir para Israel. Devia ter passado pela ponte Allenby”.
– Eu: “Porquê? Não venho enquanto palestiniano, venho enquanto cidadão americano”.
– Agente: “Não. Você é palestiniano. Por que nega ser palestiniano?”
– Eu: “Não nego que sou palestiniano. Sou palestiniano da cabeça aos pés. O meu pai é palestiniano. A minha mãe é palestiniana. Os meus irmãos são palestinianos. A minha irmã é palestiniana. O meu avô é um padre ortodoxo e as minhas raízes palestinianas têm 500 anos. O que quer dizer com ‘negar’? Eu não estou a negar nada”.
– Agente: “Não, não, você pertence ao povo palestiniano. Isto é o nosso Israel, é para os judeus. Nenhum palestiniano pode vir a Israel. Você devia ter passado pela ponte Allenby”.
– Eu: “Por que diz isso? Alguma vez tive um passaporte palestiniano? Alguma vez vivi sob a Autoridade Palestiniana? Quando a Autoridade Palestiniana foi criada, eu não estava na Palestina e nunca tive passaporte palestiniano”.
– Agente: “Mas você tem um bilhete de identidade palestiniano” [Ele refere-se ao bilhete de identidade israelita que me foi emitido depois de Israel ter começado a ocupação da Cisjordânia em 1967. Eu tive um bilhete de identidade israelita até ir-me embora para os Estados Unidos em 1969].
– Eu: “Um bilhete de identidade israelita não é um passaporte palestiniano. Deram-me um bilhete de identidade israelita quando eu estava em Beit Jala a estudar para padre, mas vocês não podem assimilá-lo a um passaporte palestiniano. Do ponto de vista jurídico, nunca fui cidadão de um país chamado Palestina. Venho com um passaporte americano e vocês devem respeitá-lo”.
– Agente: “Como quer que eu respeite o seu passaporte americano? Quer que eu o beije, que o acaricie ou o venere? Ainda por cima você é grosseiro e mal-educado. Como pode ser tão grosseiro? Você é palestiniano e grosseiro e mal-educado”.
– Eu: “Eu não sou nem grosseiro nem mal-educado, estou apenas a enunciar os factos. Estou simplesmente a dizer-lhe que sou americano com cidadania americana há 40 anos e vivendo na América há 46 anos. Portanto, concluindo, você despreza todos estes factos jurídicos e só se concentra na minha herança palestiniana?”
– Agente: “Você vai ser deportado para a Jordânia e vai passar pela ponte Allenby para continuar a sua viagem na Cisjordânia”. [A ponte Allenby é a passagem entre a Jordânia e Israel. Os palestinianos só podem entrar na Cisjordânia por essa ponte porque não estão autorizados a passar por Israel] .
Fui ter com o padre Bernard que esperava por mim. Contei-lhe o que se tinha passado com o agente do Shin Bet e esperámos. O homem voltou com os papéis da deportação e informou-me, na presença do padre Bernard, que eu seria deportado para a Jordânia. Esperei até que outros dois oficiais de segurança viessem ter comigo para me dizer “Você não será deportado para a Jordânia, mas será recambiado para donde vem”. [O aeroporto de Fiumicino na Itália].
Eu disse: “Mas acabaram de dizer-me que seria deportado para a Jordânia”. Eles perguntaram: “Quem é que lhe disse isso?” Respondi: “Não sei o seu nome. Pensa que ele ia dizer-me o nome? Foi o homem da segurança no escritório, que acaba de me fazer assinar os papéis da deportação”. Eles disseram: “Não, você tem de voltar primeiro para a Itália. Se depois decidir voltar para a Jordânia depois de ter aterrado em Itália, é consigo”.
Fiquei chocado, mas não tinha escolha. Perante os oficiais israelitas, o padre Bernard deu-me o seu número de telemóvel jordano e combinámos encontrar-nos na Jordânia no dia seguinte.
Separámo-nos e voltei para os agentes de segurança israelitas. Deixaram-me (bem como a outras pessoas) no aeroporto até à 1h30 da manhã do dia 21 de julho. Acabaram por trazer-nos umas sandes. Entre as pessoas que ficaram comigo neste calvário, encontravam-se uma mulher palestiniana e a sua filha (nascidas na Palestina, mas cidadãs americanas). No início, ela tinha viajado com mais dois filhos, mas como os rapazes tinham nascido nos Estados Unidos, foram autorizados a entrar em Israel. Os oficiais israelitas disseram às duas mulheres que elas seriam expulsas para os Estados Unidos, mas separadamente. As duas desfizeram-se em lágrimas e suplicaram que pelo menos fossem expulsas juntas, mas em vão. Havia também uma jovem britânica que me disse que trabalhava para uma associação de direitos humanos em Israel, um coreano e uma jovem russa, mas eles praticamente não falavam inglês. Fomos levados para cerca de meia hora do aeroporto num carro conduzido por israelitas; o jovem coreano, que quase não falava inglês, esfomeado e sem um tostão, perguntou aos guardas, timidamente e num mau inglês: “Vamos morrer hoje?” Estávamos dentro de uma carrinha adaptada com grades para prisioneiros. Ficámos retidos como criminosos num centro de detenção a que eles chamam de “imigração”, que não é nada disso e que eles deveriam chamar de “prisão”, onde ficámos até sermos deportados.
Fecharam-nos e proibiram-me pessoalmente de ficar com o meu iPhone. Proibiram-me de ficar com um livro naquela sala nojenta onde me meteram com um grupo de pobres homens, esfomeados e desorientados, de diferentes nacionalidades e origens. Eram cerca das 2 horas da manhã.
Passámos toda a terça-feira no centro de detenção, sem saber quando dali sairíamos. Fiquei fechado nessa sala com os outros homens. Havia um guarda árabe à frente da cela. Perguntei-lhe: “Você sabe os nomes de todos nós e tudo sobre nós. Qual é o seu nome?” Ele disse-me: “O meu nome é George”. Pelo seu sotaque, parecia ser originário de Nazaré. Perguntei-lhe: “Por que é que nos tratam como presos?” Ele respondeu: “É assim e pronto”.
Ele acabou por me deixar usar o meu telemóvel para ligar à minha mulher, Narriman, para dizer-lhe onde me encontrava. Se tinha direito a fazer uma chamada desde o aeroporto, nunca fui informado. Os outros guardas mantiveram-se totalmente anónimos, insultaram-nos e proibiram-nos de falar com os outros na sala em frente, separada por um longo corredor.
Não fechei os olhos a noite inteira, porque deixaram o néon acesso durante todo o tempo.
Às 4 horas da manhã, o guarda veio dizer-me para me preparar para o meu voo. Tinha-me ouvido falar árabe com a mulher palestiniana e a filha que estavam detidas na sala em frente da minha. Quando voltou nessa manhã, a mãe de Samar dizia que talvez eles nos maltratassem um pouco mais que acabariam por nos deportar para a Jordânia. Ele ficou furioso e começou a gritar: “Já lhe disse para não falar com os outros! Eu tento respeitá-lo! Tente respeitar-se. Afaste-se da porta!”
Por volta das 8 horas da manhã, um guarda veio à sala e agarrou-me agressivamente, dizendo que o meu avião estava pronto. Levou-me como um louco para o aeroporto, directamente para as escadas da pista de aterragem, em vez de me levar para o aeroporto mesmo.
Mal entrei no avião, perguntei-lhe: “Para onde exactamente me vai deportar?”
– Ele disse: “Para Bogotá”.
– Eu disse: “Bogotá? Porquê?!”
– “Você não e o Carlos?”, perguntou.
– “Não, eu sou George Khoury! Deixe-me ver o passaporte que tem aí”, pedi. Pertencia a um colombiano chamado Carlos.
O guarda teve consciência do seu erro e levou-me de novo de escantilhão para o centro de detenção. A sua condução agitada agravou as minhas dores do nervo ciático e ainda sofro disso. Voltámos para o centro de detenção e para a cela. Ela chamou pelo Carlos. O Carlos dormia e acordou. Disse: “Sou eu Carlos!” e foi levado.
Sem entrar nos detalhes, às 9h30 de quarta-feira voltaram para me buscar. Levaram-me de novo para a pista de aterragem e esperámos muito tempo, ao que parece até todo o avião estar cheio e pronto para descolar. Foram comigo ao longo do caminho até ao cimo da passadeira. Aí, disseram-me que viajaria para a Itália de maneira a poder voltar para a Jordânia.
Antes de entrar no avião, ele tinha na mão vários bilhetes que me levariam aos Estados Unidos via Itália, depois Nova Iorque, depois São Francisco. O agente italiano disse-me que eu recuperaria o meu passaporte logo que eu estivesse no avião com destino aos Estados Unidos. Foi exactamente o que se passou. Quando cheguei a Itália, antes de sair do avião, pedi à hospedeira o meu passaporte. Ela disse-me que ele estava nas mãos de um homem que me esperava lá fora. Um oficial italiano esperava-me em baixo das escadas. Levou-me de jipe para um lugar desconhecido fora do aeroporto, uma espécie de esquadra. Levou-me para uma sala com cerca de 5 ou 6 pessoas, na qual os nossos movimentos eram limitados. Às 17 horas, tomei o avião para os Estados Unidos e entregaram-me o passaporte.
Cheguei a Nova Iorque por volta das 20 horas no mesmo dia. Fiquei no aeroporto até ao dia seguinte de manhã, onde embarquei num avião às 6 horas da manhã. Durante todo esse tempo, tinha o meu saco no colo, tentando fechar os olhos por uns instantes, sentado num banco desconfortável, a contar os minutos e as horas até à hora do voo das 6 horas, agarrado ao meu saco como se a minha vida dependesse dele. Esse saco continha a minha insulina, a minha carteira e o meu iPhone. Sou diabético e separar-me do meu remédio seria fatal.
Cheguei a casa extenuado, na quinta-feira às 11h37. Liguei para o meu agente de viagens para ver se me podiam reembolsar a minha mala roubada e o bilhete de regresso da KLM, que eu não tinha utilizado. Descobri que esses fundos já tinham sido utilizados para pagar a minha deportação para os Estados Unidos.
Agora, estou de volta a São Francisco. Privaram-me de uma coisa que era suposta ser férias, depois de longas horas de trabalho, reencontro com o meu país e os meus antigos amigos, e fizeram disso um pesadelo infernal. Faltaram-me ao respeito, rebaixaram-me e trataram-me como se eu tivesse cometido um crime. Conto-vos a minha história para encorajar as pessoas a visitarem a Palestina, de modo a desafiarem a brutalidade desta entidade racista e denunciá-la aqui nos Estados assim como em Israel. Embora seja extrema, não é uma história única.
Muitos outros casos de árabes americanos, vítimas de discriminação racista pelos israelitas, em cada ponto de entrada no Estado israelita ou na Cisjordânia, foram relatados. Assédio, detenção e interrogatórios são indissociáveis dos esforços implementados pelo Estado israelita para manter os palestinianos fora de Israel-Palestina e fazer entrar cada vez mais judeus. São os meus impostos americanos, mais de 3 mil milhões de dólares de ajuda, tanto económica como militar, que financiam a opressão do povo palestiniano. Sem o apoio cego e incondicional dos Estados Unidos ao Estado de Israel, a ocupação e todas estas tragédias contra os palestinianos não poderiam continuar.
Fonte original. Traduzido do francês pelo CSP.
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