Há quem diga que as eleições municipais não servem para aferir a temperatura política nacional. Isto não é certo: basta dizer que, em 2012, na carona da miragem “neodesenvolvimentista” do primeiro governo Dilma, o PT elegeu 630 prefeitos, chegando ao 3° posto dentre todos os partidos. Já em 2016, no auge da Operação “Lava Jato” e quando já ocorrera o impeachment da “presidenta”, a sigla recuou para o 10° lugar no ranking, fazendo apenas 256 chefes municipais. A eleição de uma figura como Marcelo Crivella, no Rio, por exemplo, na linha “tradição, família e propriedade”, já sinalizava os rumos para quais marchava a política oficial. Portanto, sim, embora sejam eleições com pautas distintas, não há uma dissociação absoluta entre as eleições locais e gerais.
Dito isso, qual conclusão se impõe deste primeiro turno das eleições de 2020?
A principal é esta: a chamada política tradicional (leia-se: de direita, pró-latifúndio, oligárquica) sobreviveu à “Lava Jato” e à pretensa razia bolsonarista de 2018, como sobrevivera antes à suposta “renovação petista” (há poucos anos, que parecem alguns séculos, era o PT quem se arvorava representante da “nova política”). Trata-se de um espectro político com alicerces bastante arraigados, as oligarquias locais, cuja base material de poder é o latifúndio historicamente intocado. Olhe-se as listas dos candidatos eleitos ou favoritos a ganhar o segundo turno, e concluir-se-á que são os velhos medalhões de sempre ou seus apadrinhados diretos. Pelo menos 43 das 100 maiores cidades do país já elegeram prefeitos em primeiro turno, e as cinco principais legendas foram PSDB (9), MDB (8), PSD (6), DEM (5) e PP (4). O PSL, que elegeu a segunda maior bancada do Congresso e fez três governadores em 2018, não levou nenhuma prefeitura (no segundo turno disputará apenas Sorocaba e Praia Grande, ambas em São Paulo). Ao anedotário pertence a aliança entre PT e PSL, que elegeram respectivamente prefeito e vice da pequenina cidade de Santana do Itararé (PR).
Como se vê, o enquistado poder paroquial, das máfias e dos chefes políticos locais – corporativo, reacionário, fisiológico – é como as baratas, que a lenda reporta capazes de sobreviver até a uma bomba atômica. Este é o próprio Estado burocrático-latifundiário, intocado na sua essência há cinco séculos, preservado quaisquer que sejam os governos e os regimes centrais porque não tocam – não podem e não querem – no sistema de Estado e nas classes que o dominam. Apenas uma Grande Revolução pode fazê-lo.
É fundamental notar que há um grande espaço de descontentamento não preenchido: milhões de votos depositados em Bolsonaro e em qualquer poste que estivesse ao seu lado há dois anos sumiram, mas não apareceram em lugar algum. Antes, se pulverizaram em distintas direções, comprovando que a suposta polarização entre PT e Bolsonaro não passa de uma construção arbitrária. Isto não significa um “conservadorismo inato” ou aprovação do eleitor médio ao velho sistema político vigente, mas apenas o fato de que este reconhece todos que se lhe apresentam como partidos da ordem, que compartilham da mesma nulidade comum. Suas esperanças de mudança seguem insatisfeitas. Basta ver o novo recorde de abstenções (23% na média nacional, sem contar votos nulos e brancos), que em capitais como Porto Alegre ficou acima de 30%. No Rio de Janeiro, o boicote eleitoral alcançou 2,2 milhões, enquanto Eduardo Paes, Crivella, Martha Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT) só somados podem sobrepassar tal número. Campinas, no interior de SP, teve um número absoluto de boicote eleitoral em mais de 370 mil pessoas, enquanto a soma dos três primeiros colocados não ultrapassou 322 mil votos. Em São Paulo, o boicote eleitoral sobrepassou 3,6 milhões de pessoas, enquanto Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (Psol) alcançaram, somados, 2,8 milhões de votos. Tais números – sem somar os milhões de brasileiros que têm o título de eleitor cancelado – expressam o acachapante protesto silencioso das massas, embora eloquente, contra o sistema de governo. Aliás, apenas a desonestidade intelectual pode atribuir tais índices à pandemia, pois eles são quase idênticos aos registrados nas últimas eleições.
O desempenho da “esquerda” oficial foi sofrível. O PT, maior representante deste espectro, tem dois segundos turnos de capitais pela frente (Recife e Vitória), e só. Em São Paulo, teve menos de um terço dos votos de Boulos e ficou fora, por exemplo, até da disputa de São Bernardo do Campo. Por falar em Boulos, há que se destacar que sua “onda” se deve à sua conversão em interlocutor do pessoal da Faria Lima, e o seu empenho em se mostrar como um politiqueiro tradicional bem comportado. E isso é o que ele é mesmo, como ficou comprovado pela sua atuação à frente do MTST durante a Copa de 2014, quando sua traição aos protestos por moradia – após longas bravatas – foi decisiva para assegurar a realização da abertura do espúrio megaevento. A menos que achássemos que os bairros abastados da capital paulistana tenham se convertido ao socialismo, seria espantoso ver nesta singular figura uma grande recuperação da “verdadeira esquerda”, como querem alguns incautos. Parafraseando Marx, ao comentar a eleição de sindicalistas pelegos ao parlamento na Inglaterra: seria bom vê-lo eleito, deixando caminho livre no interior do movimento popular. Uma gestão Boulos em São Paulo seria o melhor antídoto para desmascarar este petismo tardio.
Como se nota, e é esta a conclusão, estes pleitos municipais vêm consagrar a agonia deste cadáver insepulto que é o velho e carcomido Estado de grandes burgueses e latifundiários brasileiro, assentado no poder paroquial das oligarquias, a serviço do imperialismo, principalmente ianque. Sua vitória é sua derrota: resta cada vez mais claro, para amplos setores da população, a impossibilidade de qualquer mudança efetiva da sociedade por meio das suas engrenagens enferrujadas. Bolsonaro, que capturou uma avalanche de votos com a promessa de “mudar tudo o que está aí”, sai derrotado, como outrora o PT, porque não cumpriu a promessa – sem entrar no mérito da demagogia de cada qual. Assim, sucessivamente, nosso povo experimenta diferentes cartuchos que vão sendo queimados um a um. A desmoralização da única instância em que o Estado se apresenta como democrático para a maior parte da população – as eleições, pensadas pelos ideólogos liberais como o altar no qual se reafirma periodicamente o pacto social – não é sem consequências. Esta experiência do engano, e da frustração, não ocorrerá ad eternum. Em algum momento histórico determinado, ela se encontrará com uma força política consequentemente transformadora (a revolucionária) ou consequentemente reacionária (a golpista/fascista). E então, este processo, como se fosse num estalo, mas na verdade longamente tecido e acumulado, rebentará.
Em tempo: que os liberais, isto é, direita liberal celebre com júbilo o falso brilho de uma Vitória de Pirro, como estão a alardear os monopólios de imprensa e seus corifeus dos velhos e novos partidos corruptos desde a medula, com sua máxima de “as urnas deram recado rejeitando os radicais”. Que elas revelaram ser a extrema-direita de Bolsonaro fogo de palha eleitoral, rechaçado por sua pregação de ódio reacionário, não há nada que possa desmenti-lo. Porém tachar por radical o PT et caterva é só puro auto-engano. Da mesma forma também não se pode refutar que o PT foi rejeitado por sua traição às promessas e sua corrupção. Corrupção em que, como todo este sistema político e seus partiduchos, ele foi a última novidade da série. A esquerda, senhores, não passa pelos lupanários de vossa farsa eleitoral. Esta saltará à palestra, à cabeça dessas mesmas massas, votantes e abstencionistas, mil vezes enganadas, vilipendiadas e pisoteadas em seus direitos, por vosso sistema liberal de exploração e opressão. Quando? Ganha um doce quem acertar, ganha dois quem adivinhar por qual meio e via elas estabelecerão a Nova Democracia e o Brasil Novo.
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